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Lendas da nossa terra

09
Mar16

 

A Lenda Dos Três Rios

 

Diz a lenda que três ribeirinhos alegres e saltitantes queriam ver o mar e um dia resolveram meter-se a caminho.

-Partimos logo de manhã muito cedo - disse um deles.

   -Partimos antes do nascer do Sol - disse o outro.

   -E vamos ver qual de nós chega primeiro ao mar - disse o último.

   O luar brilhava nas águas adormecidas dos três ribeirinhos.

No outro dia, o primeiro a acordar bocejou, agitou as águas e pensou:

   -Partirei já e assim serem o primeiro a chegar! O ribeirinho que sempre ouvira chamarem-lhe Tajo deixou-se escorregar pela montanha. Como era um ribeirinho muito alegre saudava os povoados e as gentes; a todos dizia adeus e informava:

   -Vou a caminho do mar; tudo é muito lindo, mas eu quero ver o mar. Adeus, adeus.

   Brincava com as raparigas que lavavam a roupa nas suas águas claras, escolhia os caminhos mais belos entre pinheiros, oliveiras e pomares. Aos ribeirinhos que encontrava dizia sempre:

-Vou para o mar! Venham comigo! Vamos para o mar!

E muitos abraçavam aquele ribeirinho aventureiro . Cada vez mais forte, o Tajo seguia feliz e encantado com as terras que banhava.

   Um dia, uma menina que brincava com as ondas pequeninas chamou-lhe Tejo e ele gostou do novo nome.

-Tejo serei para quem me veja.

E para os pescadores, ele ficou a ser o Tejo que lhes dava o sustento de cada dia. Para os lavradores, ele é o Tejo que lhes rega as terras.

   Calmo e divertido, o Tejo chegou ao mar entrou nele de braços abertos. Ali estava, azul e refrescante, o mar que procura por tão longo caminho.

Entretanto, tinha acordado outro ribeirinho, aquele que se habituara a que lhe chamassem Ana e sabia que outros que davam o nome de Uadi-Ana, ou seja, Rio Ana.

Ainda ensonado, não sabia bem qual o melhor caminho para chegar ao mar. Ora corria para um lado, ora mudava para outro. mas sabia que o desejo mar se encontrava para sul.

E lá seguia, entre terras baixas e secas; mais tarde entre rochedos queimados pelo sol.

Apercebeu-se então de que o povo o chamava por um novo nome. Agora, para todos, ele era o Guadiana.

 

   Fez amizade com o Caia e Degebe, uns ribeirinhos tímidos que também queriam ver o mar e se juntaram a este novo amigo.

Um dia, assim em boa união, encontraram o mar, um mar bem azul e águas tépidas e límpidas. O bom do rio Guadiana mergulhou no Oceano Atlântico feliz como uma criança que brinca na areia.

   Mas não era ele o primeiro a encontrar o Oceano pois o Tejo, que saíra mais cedo, mais cedo encontrara o mar.

Enfriorado e dorminhoco, o terceiro ribeirinho só acordou quando o sol já tinha acordado há muito tempo.

-Estou atrasado! Já é muito tarde! - pensava o ribeirinho ensonado.

Lembra-se de que lhe tinham chamado Durius, mas agora as gentes que o olhavam e lhe chamavam Duero. Corria por terras baixas e secas onde se demorava a observar os campos cultivados.

   Mas não deixa de pensar

-Vou ser o último! É preciso correr!

   E partiu de abalada esgueirando-se por corredores pedregosos saltando rochedos, correndo apressado, cada vez mais apressado.

Nas suas margens subiam encostas cobertas de vinhedos com folhas verdes na Primavera e folhas douradas no Outono, escondendo pesados cachos de uvas maduras.

   -Quero chegar ao mar, mas vou ser o último, já sei, vou ser o último! -

Por isso, o Douro que também é Duero e já foi Durius, acabou por seguir o caminho mais agitado.

 

 

O senhor feudal criminoso, o ermitão piedoso e o misterioso barrilzinho

 

Habitava nos confins da Normandia um destemido cavaleiro, cujo nome causava terror na região. De seu castelo fortificado junto ao mar, não receava nem mesmo o rei.

De grande estatura e belo porte, era no entanto vaidoso, desleal e cruel, não temendo a Deus nem aos homens.

Não fazia jejum nem abstinência, não assistia à Missa nem ouvia sermões. Não se conhecia homem tão mau.

Numa Sexta-feira Santa, bradou ele aos cozinheiros:

— Aprontai-me para o almoço a peça que cacei ontem.

Ouvindo isto, seus vassalos exclamaram:

— Senhor, hoje é Sexta-feira Santa. Todos jejuam, e vós quereis comer carne? Crede-nos: Deus acabará por vos punir.

— Até que tal aconteça, terei enforcado e roubado muita gente.

— Estais seguro de que Deus tolerará mais isso? Vós devíeis arrepender-vos sem demora. Em um bosque vizinho há um padre eremita, varão de grande santidade. Vamos até lá e confessemo-nos — insistiram os vassalos.

— Confessar-me? Aos diabos! — respondeu com desprezo o senhor.

— Vinde ao menos fazer-nos companhia.

— Para me divertir, concedo. Por Deus, nada farei.

 

E puseram-se a caminho. Na floresta solitária e quieta encontraram o santo varão na ermida.

Advertido pelos vassalos, que se confessaram, saiu o eremita ao encontro do orgulhoso senhor, que ficara montado. E disse-lhe:

— Sede bem-vindo, senhor. Visto que sois cavaleiro, deveis ser cortês. Desmontai e vinde falar comigo.

— Falar convosco? Por que diabos? Estou com pressa.

— Entrai e conhecei minha capela e minha morada.

Muito a contragosto e resmungando, o cavaleiro apeou. O eremita tomou-o pelo braço, conduziu-o diante do altar e disse-lhe:

— Senhor, matai-me, se quiserdes, mas daqui não saireis sem antes confessar-vos.

— Não contarei nada! E não sei o que me impede de matar-vos.

— Irmão, dizei-me um só pecado. Deus vos ajudará a confessar os demais.

— Diabos! Não me dareis sossego? Eu o farei, mas de nada me arrependerei.

E com grande arrogância contou de um só lance todos os pecados.

Depois de ouvi-lo, o eremita propôs:

— Senhor, pelo menos sujeitai-vos a uma penitência.

— O quê!? Penitência!? Caçoais de mim! — vociferou furioso o cavaleiro.

— Jejuareis todas as Sextas-feiras durante três anos.

— Três anos! Estais louco! Jamais!

— Então, um mês.

— Também não.

— Ireis a uma igreja e direis aí um Padre-Nosso e uma Ave-Maria.

— Para mim seria enfadonho, e ademais, tempo perdido.

— Pelo amor de Deus todo poderoso, pegai pelo menos este barrilzinho, enchei-o no regato próximo e trazei-o de volta para mim.

— Bem, isto não me custa tanto. E sobretudo para ficar livre de vós, concedo.

Saiu o cavaleiro em direção à fonte, e de um só golpe afundou na água o barrilzinho. Neste não entrou uma gota sequer. Tentou novamente de um jeito, de outro... Nada!

Intrigado e rangendo os dentes de raiva, voltou à ermida e esbravejou:

— Barril enfeitiçado! Não consigo meter-lhe uma só gota de água!

— Senhor, que triste estado é o vosso! Uma criança o teria trazido transbordando. Isto é um sinal de Deus, por causa de vossos pecados.

— Pois eu vos juro que não lavarei minha cabeça, não farei a barba nem cortarei as unhas enquanto não encher este barril, ainda que tenha de dar a volta ao mundo. E nisto empenho minha palavra!

E assim partiu o cavaleiro com o barrilzinho, levando só a roupa do corpo. Em todos os poços e regatos, cascatas e rios, lagos e mares, experimentava encher o pequeno tonel, mas sempre em vão. Caminhando sem cessar, passando frio e calor, por planícies e montanhas, percorreu ele muitos países.

Maltrapilho e sujo, curtido pelo sol, obrigado a mendigar, sofreu fome, insultos e chacotas, pois muitos desconfiavam dele. Seu corpo ia definhando, e o barrilzinho pesava-lhe enormemente, amarrado ao pescoço.

Ao cabo de um ano de fracassos, decidiu voltar à ermida, onde por fim chegou, exatamente na Sexta-feira Santa. O eremita, não o reconhecendo, perguntou:

— Caro irmão, quem vos deu esse barrilzinho? Há um ano entreguei-o a um belo cavaleiro, que não voltou mais aqui. Nem sei se ainda vive.

— Esse cavaleiro sou eu, e este é o estado em que me colocaste! — respondeu cheio de cólera o desgrenhado peregrino, contando a seguir suas desventuras.

 

O santo homem indignou-se ante tanta dureza de alma, bradando:

— Vós sois o pior dos homens! Um cão, um animal qualquer teria enchido o barril. Ah! bem vejo que Deus não aceitou vossa penitência, porque não vos arrependestes!

E pondo-se a chorar, rogou à Santíssima Virgem que intercedesse por aquele pecador empedernido.

Enquanto o eremita soluçava em sua longa oração, o cavaleiro, quieto, foi tocado pela graça. Seu coração tão duro comoveu-se. Os olhos se lhe turvaram. Uma grossa lágrima rolou-lhe pela face ressequida, caindo diretamente dentro do barrilzinho, que trazia amarrado ao pescoço. E esta única lágrima encheu-o até os bordos.

Sinceramente arrependido, o cavaleiro pediu para confessar-se. O eremita, maravilhado, abraçou-o em prantos de alegria. Após ministrar a absolvição sacramental ao penitente, o eremita perguntou-lhe se queria receber a comunhão.

— Sim, meu pai. Mas apressai-vos, porque sinto que vou morrer.

Tendo recebido o Santíssimo Sacramento, com a alma purificada, o cavaleiro agradeceu comovido ao eremita, e colocou-se em suas mãos. Pouco depois exalava o último suspiro.

A capela iluminou-se, e os anjos levaram sua alma ao Paraíso. Diante do altar, o eremita velou longamente aquele corpo coberto de andrajos, tendo junto de si o prodigioso barrilzinho.